domingo, 17 de abril de 2011

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Olhos de avestruz


A insignificância, o modo de esconder o cabelo dentro da blusa, oculto, que não se vê facilmente, que não está à vista.

O jogo das escondidas, brinquedo infantil em que as crianças, todas menos uma, se escondem para serem achadas por esta. Às escondidas, ocultamente, em segredo está o olhar de avestruz que já se sobressai. Mas nunca sai.

Depois de muito pesar os pesares, o corpo dói. Não é para menos. Me diga, quem aguenta tanta picada de abelhudo? A pele avermelha, cor rubra, e a dor é insuportável quando se deixam ferroadas. Esses abelhudos não se vão quando me furam. Se vão sim, mas em vão, lá para o céu dos desmamados.
Não há mais nuvem cobrindo o auto-herói das aparências. Não vou mais lhes emprestar minha auto-ajuda, por nada.

Eu, já não mais avestruz, vou sair dos eixos, proceder de maneira não condizente com o caráter e os hábitos próprios. Sair à luz, nascer. Sair da casca, abandonar a introspecção, romper o silêncio.

Em sussurros medonhos vos digo, adeus.

Ufa!Vou-me embora!
Em grito de alivio, com gotas de veneno, caem, escorrem sob o chão.
È no incerto que não há macacos pendurados nos ombros, pesados, tão pesados.
Esses macacos não são meus!

Procuro ruas, entre vielas e vejo muitos se esfarrapando pelo chão. Escolho a solidão!

Prefiro caminhos estreitos, a ter que me esconder entre ‘pessoas-macacos’ por aqui.

Por fim, acabou o jogo de tabuleiro, que consiste em dizer o contrário do que as palavras significam.

Pro lixo a zombaria, o sarcasmo!Que vomitem a ironia amarga, para o bem maior, o que é bem melhor.

E que nunca mais ouçam.

Entender, perceber os sons pelo sentido do ouvido, da audição, atender, escutar. Escutar os conselhos, as razões de... Receber o depoimento, inquirir o ruido de quem sobrecarregou os olhos. E se foi.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A ovelha negra



Havia um país onde todos eram ladrões.
À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa roubada.
E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último, que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinqüentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços, e não havia nem ricos nem pobres.
Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair como o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances.
Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.
Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.
Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo passar a água embaixo. Voltava para casa, e a encontrava roubada.
Em menos de uma semana o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém; assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a casa intacta: a casa que o homem honesto deveria ter roubado. O fato é que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia; assim, iam ficando pobres.
Ora, os ricos perceberam que, indo de noite até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: “ Paguemos aos pobres para irem roubar para nós”. Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários, as percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram os mais pobres dos pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres, e assim instituíram a polícia e construíram as prisões.
Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou ser roubado, mas só de ricos e pobres; e no entanto todos continuavam a ser pobres.
Honesto só tinha havido aquele sujeito; e morrera logo, de fome.


( CALVINO, Italo. )